Essa e uma reflexão importante. Que bom podermos sempre nos questionar sobre o desenvolvimento da dança e sobre nossas escolhas dentro desse universo. No entanto, algo que me incomoda, em muitas conversas, é o discurso sem embasamento sobre a "necessidade do resgate ao tradicional".
Dança do Ventre Tradicional... Será que todos nós sabemos o que é isso? Eu posso afirmar que eu não sei. Estou há mais de 10 anos coletando referências sobre o que poderia ser. Comecei a fazer aulas em 1999, ou seja, sou fruto de uma geração de professoras que já vivenciavam o processo de globalização da dança.
Desde o meu início, tive consciência do meu real distanciamento sobre as fontes "originais" da dança. Afinal de contas sou brasileira, não tenho ancestrais árabes, turcos ou persas na minha árvore genealógica mais próxima e minha língua materna é o Português do Brasil.
Mas é claro que sempre queremos buscar a raiz! E acho a curiosodade, pesquisa e estudo imprescindíveis. No entanto, é comum escutarmos comentários como:
" As bailarinas da Golden Era e que tinham a essência da Dança Oriental."
" A verdadeira Dança do Ventre não tem esse monte de deslocamentos e movimentos do Balé Clássico."
"Gosto da Dança do Ventre estilo egípcio... Improvisada, com sentimento e expressividade. Não essa dança coreografada que vemos nos dias de hoje."
Mas o que de fato será verdadeiro e o que será equivocado nas colocações acima? Enfim, o que venho propor hoje com esse post é repensarmos nossos conceitos sobre o que de fato venha a ser o tradicional, o original, o verdadeiro, dentro da Dança do Ventre, já que muitas vezes acabamos misturando conceitos que não necessariamente tem de estar de mãos dadas.
O período identificado como Golden Era, a Era de Ouro da Dança Oriental se referente às décadas de 30, 40 até final de 50, que tiveram como expoentes máximos as bailarinas Tahyia Karioca, Samia Gamal e Naeema Akef.
Esse foi o momento em que a indústria cinematográfica começou a fortemente se desenvolver no Egito, seguindo muito dos padrões norte-americanos. As apresentações de dança apareciam inseridas no contexto da trama (num restaurante onde se passava uma cena, ou numa festa de casamento, por exemplo). Porém, à media em que as bailarinas conquistaram fama e sucesso, muitas também passaram a atuar e a cantar nos filmes.
Sendo assim, pode-se dizer que a dança estava absolutamente fora do contexto "original egípcio". Ela aparecia como uma elegoria em função de uma situação específica. A ambientação, cenografia e até mesmo o padrão estético de beleza das bailarinas muitas vezes seguiam convenções importados do Ocidente.
Para mim, em muitos dos filmes fica clara a visão a respeito do que seria o "exótico" e o "misterioso" mundo árabe fantasiado pelo Ocidente. E essa visão era sempre reproduzida para que o pacote filme + dança se encaixasse num padrão comercial.
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Hum... Para refletir...
Quando batermos o martelo de que as influências dos Balé não foram positivas para a Dança Oriental, então devemos subtrair todo o capítulo da dança egípcia que inclua o trabalho do bailarino e coreógrafo Mahmoud Reda (Saiba mais sobre ele: http://en.wikipedia.org/wiki/Mahmoud_Reda).
Ele foi o coreógrafo responsável por fazer a transição do folclore egípcio para a sua expressão no palco, e para tanto não só adicionou passos do Balé, como modificou e inventou outros referentes a Dança Oriental.
"... when you bring them, the real folkloric dancers, put them on stage, they look odd, they look strange. Their costumes, they don’t know where to look, they don’t know, and if they do their things, it’s very monotonous. So what I call my choreography is not folkloric. It’s inspired by the folkloric." Mahmoud Reda
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Veja esse link da CNN sobre o seu trabalho: MAHMOUD REDA: Egypt's answer to Fred Astaire http://edition.cnn.com/2010/WORLD/meast/01/13/belly.dancing.reda.raqia/index.html?_s=PM:WORLD
Lembro-me da minha perplexidade ao ouvir de Farida Fahmi numa palestra em São Paulo no começo dos anos 2000, de que a Dança Said manipulando bastão como conhecemos, ou a Dança do Jarro, por exemplo, não existiam no Folclore egípcio originalmente, mas sim partiram de idealizações artísticas de Mahmoud Reda: cada dança era resultado da observação de aspectos sociais e culturais de várias partes do Egito + movimentos típicos associados ao tipo de música + a visão e adaptação estéticas de Reda (que incluia, também, a fusão de passos do Balé Clássico).
Ou seja, aquilo que eu julgava ser tradicional, nada mais era do que a elaboração de um artista durante as décadas de 50/60. Hummm... mais uma coisa para refletir!...
Somente temos registros e referências em quantidade sobre a Dança que acontecia no Egito, Libano a partir do advento e popularização da tecnogia da câmera de filmagem. A Dança do Ventre que então acontecia nos cabares e night clubs passou a ser registrada em vídeos, assim como apresentações específicas para programas de TV e grande eventos passaram a ser pensadas e desenvolvidas.
Paralelo a isso tinhamos grandes nomes da dança como Nagwua Fouad, Suhair Zaki e mais tarde Nadia Gamal (com estilo identificado como libanês), Aida Nur, Dina se tornando superstars, e a Dança se tornando cada vez mais business.
Muitas dessas estrelas não só claramente subiam ao palco com estruturas coreografadas, como também algumas delas se posicionavam abertamente sobre isso (como Nadia Gamal, por exemplo), dizendo que sim, coreografavam seus shows.
Abertura do show da grande estrela Najwa Fouad, ja na decada de 80, com corpo de baile, uso de elementos cenograficos e coreografia. | Filmagem rara e absolutamente incrivel da lenda Nadia Gamal, mostrando sua loucura e paixao tipicas, aliadas ao trabalho de palco e comunicacao com a banda. |
Aida Nour, uma das referencias do Baladi e "quadril solto egipcio", em sua entrada no Marriot Cairo, nos anos 80. | Dina, expoente da Danca no Egito desde a decada de 90. |
Pois e... mas essas lendas conseguiam equilibrar essas duas formas de dançar.... Vishhh... Quanta coisa para refletir!.... ! ..... Humpf.... !!!!! ...
Os escolhi por serem tipos de comentários recorrentes entre alunas e profissionais, e assim refletem as dúvidas mais frequêntes referentes a esse assunto, sob o meu ponto de vista.
A Dança do Ventre Tradicional... tenho certeza de que ela existe. Dentro das casas, entre as reuniões de mulheres, para aqueles que fazem parte e vivenciam a cultura. Porém, quanto mais extrairmos a dança desse ambiente para levá-la para o palco, ou encarando-a como uma linguagem corporal a ser aprendida dentro de uma sala de aula, ou ainda assumindo-a como profissão, mais nos distanciamos da origem, por mais que juremos a nós mesma que nos mantemos fiéis às raízes.
Como já mencionei em posts anteriores, para mim a dança é resultado de uma série de fatores sociais, comportamentais e culturais. Se não vivemos inseridos na cultura, não falamos a língua, não entendemos as letras das músicas, não comemos a comida típica, não gesticulamos e damos risada como mulheres dessa cultura, como podemos ser puristas em relação à tradição na maneira de se dançar?
Referências sempre teremos. Elas são imprescindíveis para guiar nossas percepções e escolhas, mas será que precisamos encaixar a dança e as pessoas em categorias?
Um bj grande... e até semana que vem!
Elis